Cartas de Díli #5

9.7.17
Querida Bea,

Esta carta se calhar vai ser mais curta do que as anteriores, porque estou cansada. Podia continuar a adiar escrevê-la até me sentir com mais energia, ou com as ideias mais claras, mas estou convencida que obrigar-me a manter uma periodicidade é importante.
Estou a meio de uma semana diferente, e intensa, de trabalho com o workshop de jornalismo para crianças e devo dizer que tem sido uma experiência e tanto.
Quando me perguntam como está a correr eu não sei bem o que responder, porque para mim está a ser muito interessante e frustrante ao mesmo tempo.
Primeiro, porque trabalhar com crianças, mesmo não sendo uma novidade, é sempre um desafio. E depois, é muito complicado ver todo o potencial daqueles miúdos e não saber como convencê-los a usar essas capacidades, porque nem eles sabem que as têm.
Há ali miúdos incríveis, que desenham como nunca vi, que riem como nunca vi, que choram, que se controlam, que se esforçam e lutam como sabem.
Só passaram três dias (apesar de me parecerem três semanas) mas já sei de cor quase todos os nomes, mesmo que os pronuncie incorrectamente, já consolei birras de cansaço, já pus pensos em feridas, já sanei conflitos e já dei abraços de mimo (sim, sem pedirem, imagina).
Além disso, acho que começam a ter uma ideia da estrutura de uma notícia. Não sabem escrevê-la, ainda, ou não todos, pelos menos, mas sabem o que é o título, a legenda da foto e que o texto deve responder às perguntas Quem? O Quê? Onde? Quando? e Porquê?
Não tenho a certeza se o orgulho com que me mostram os resultados é por terem concluído a tarefa pedida, ou por sentirem que aprenderam qualquer coisa. Suponho que na cabeça deles uma coisa implica a outra, mas sabemos que nem sempre é assim.
Por outro lado, os teus irmãos, que passam as manhãs no "Summer Camp" e as tardes em casa com a Domingas estão no pico da carência afectiva, tipo, ao ponto de irem para debaixo do coqueiro que é o único sítio da casa para onde não podem ir, porque nesta altura estão sempre a cair cocos.
Não te rias (sim, estou mesmo a ver-te gozar comigo), há mais casos de mortes com cocos na cabeça do que com ataques de crocodilos, lembras-te? Ainda por cima, desde que estou cá só vi um crocodilo, contra três cocos que me acordaram a meio da noite a cair no chão.
Não é que a estatística me interesse por aí além, enquanto disciplina, mas eu guardo uma lista de formas de morrer surreais e nem imaginas as coisas absurdas que acontecem.
Entretanto, a semana acabou e não te enviei a carta. Depois do terceiro dia de trabalho fiquei doente, com tosse, mas o ben-u-ron resolveu a coisa e sobrevivi à primeira semana. Agora, estou mais ou menos em pânico com a que começa amanhã.
Também já dei por mim a pensar que vou sentir a falta deles. São quase todos irritantes e maravilhosos na mesma proporção.
Enfim, é bem possível que esta experiência esteja a ser a mais intensa desde que estou em Timor, porque mexe com o meu lado mais ingénuo. Aquele que olha para estas crianças, que são o futuro deste país, e acredita que pode fazer alguma diferença com as palavras.

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